segunda-feira, dezembro 03, 2012

O Gira-Gira - Tati Bernardi

Eu tinha treze anos, ele uns quinze. Não lembro o nome exatamente, mas lembro que ele torcia para o Palmeiras, e quando tinha jogo, eu escutava seus berros desafinados. Ele tinha as sobrancelhas grossas e pulava na piscina gelada sem medo de levar bronca da mãe. A roupa dele tinha cheiro de amaciante e, por alguma razão, aquilo me trazia conforto. Um dia, ele olhou bem no fundo dos meus olhos, apertou meu braço e disse que à noite eu teria uma surpresa. Eu esperei por ele a madrugada inteira, de pé, espiando pela janela do meu quarto.
Meu quarto ainda tinha bonecas e bichinhos de pelúcia, e todos eles tiveram pena do meu cansaço e da minha ingenuidade. No dia seguinte, eu acordei sem hálito de criança e perdi para sempre o doce da boca. Eu tive minha primeira azia com lactose no café da manhã e vomitei. Foi a última vez que vomitei na vida. Eu tinha dez anos, ele também. O nome era Felipe e ele se sentava duas carteiras à frente da minha. Ele jogava bola tão bem que podia faltar na aula para ir aos campeonatos da escola.
Um dia, ele escreveu “te amo, quer namorar comigo?” em um bilhete e entregou para mim. Eu lembro que li e tive uma tontura tão grande que achei que fosse morrer antes da prova de matemática (e fiquei feliz, porque não tinha estudado).Quando eu fechei o bilhete, estava escrito “Beatriz”. Ele havia dado o bilhete apenas para eu entregar para a menina que sentava atrás de mim.
Eu senti tanta vergonha, tanta vergonha, tanta vergonha, que pedi à professora para ir ao banheiro. Quando cheguei ao banheiro, fiz várias caretas para o espelho. Até hoje não sei por que exatamente.
Talvez eu quisesse ficar tão feia quanto estava me sentindo.
A calça de moletom da escola me deixava horrível, e eu amarrava uma blusa na cintura. A Beatriz não precisava disso, ela ficava linda naquela calça, ela era bailarina. Eu apertava tão forte aquela blusa com um brasão de fogo na minha barriga que as marcas do elástico ficavam por quatro dias desenhadas na minha pele. Eu tinha cinco anos, ele seis. Ele se chamava Thiago e tinha um irmão chamado Pablo. Ele corria tanto com o gira-gira que eu achava que meu coração fosse pular pela boca. Ele colocava a mão sobre a minha quando eu fazia que ia sair do gira-gira e a apertava. Eu sempre fazia que ia sair só para ele colocar a mão sobre a minha. Um dia, eu simplesmente o agarrei e dei um beijo de língua nele. A professora chamou minha mãe na escola para contar e minha
mãe, puxando de leve a minha maria-chiquinha, perguntou à professora quem era o Thiago.
“É aquele ali na aula de ginástica.” Quando olhamos, ele estava todo sujo e com o nariz escorrendo. Eu ouvi da minha família toda, até poucos anos atrás, que eu gostava de “ranhentos”.
Um dia, ele me trocou pela Dani, uma garotinha de sardas que tinha irmãos e não usava botinhas ortopédicas. Eu lembro até hoje de ter perguntado à minha mãe se sardas eram doença. Torcendo muito para serem. Hoje eu tenho 29 e eles têm idades, nomes e manias variados. E por mais que eu olhe para o meu escarpin, ainda vejo aquelas botas grosseiras numa canelinha fina.
As Danis com sardas e as Bias bailarinas ainda existem e elas continuam tendo a família mais descolada do mundo e ficando lindas em calças de moletom. Por mais que meu corpo durma, minha alma continua na janela esperando você aparecer, ingênua e cansada. Eu continuo acordando todos os dias com saudade do doce e com medo do azedo. Eu continuo fazendo caretas e sou a única que não vê muita graça nelas.
O gira-gira não para nunca, meu coração continua acelerado e eu continuo fazendo que vou pular fora para você me socorrer. Para você segurar bem firme na minha mão e me fazer ter coragem de arriscar
o vento na cara e o mundo muito rápido. Coragem para o mundo que dá tantas voltas. Eu ainda espero chegar a minha vez de receber o bilhete “te amo, quer namorar comigo?” apesar da blusa na cintura e das marcas causadas por ele e por todo o resto.

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Não fiz o melhor, mas fiz tudo para que o melhor fosse feito. Não sou o que deveria ser, mas não sou o que era antes. Martin Luther King

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